terça-feira, 21 de agosto de 2012

Delírio




Não saberia dizer o que foi feito de mim. De repente, despedacei-me em muitas e vi-me em grande quantidade, uma multidão, miríade de formas sem essência. Pura ausência, embriagada em nostalgia de uma jornada bruta que me arremessou para cima de um monte e me levou ao longe, distante de mim.

Eis então que não me vi, me perdi. Quando pude perceber já era outra, qualquer que visse, me chamaria de louca. Abstração. Sensação. Simples percepção do Ser. Atitudes belas tomavam-me toda. A Natureza falava-me inteira. Terra, Fogo, Água, Ar, Éter. Elementos todos que me compunham toda e eu nua, despida, transvestida de gente, sem ser essa gente comum. Mutação.

O coração dilatava-se em aceleradas pancadas sem ritmo algum. Sentido: nenhum. O físico não mais pertencia ao corpo esvaido de lá. Sem forma. O que havia era Amor em estado de fluxo. Êxtase, êxtase, êxtase... A Beleza Universal imprimia seu ritmo em notas agudas. E o fio do Amor que transcorria por aquele Ser transbordava palavras em papéis antes virgens e ateus. Jorravam poesias inebriadas do néctar do Amor mais puro.

Porém, à medida que o papel era preenchido, voltava-se o Si ao ser pequeno, na inexorável condição humana e solitária de todo um.

Regresso tortuoso e concreto. O contato do suor de minhas mãos por cima de minhas coxas lembraram-me da vó velha e gorda por parte de mãe que me obrigava a sentar em seu colo todos os fins de tarde. Pensamentos, pensamentos, pensamentos. O eu instalava-se e a mente me reconhecia como um ser, sendo. Ainda que vazia, eu era. E sua lembrança me doia.

Tu



Tua imagem refletida no espelho de minha memória contorce minhas tripas até o mais profano estado de minha existência.

Mas antes de Ti, eu.

Quem eu era naquele turbilhão de emoções sem nome? Não me sabia, não me sabia, simplesmente não me sabia. E lançava aos ares do recôndito mais profundo de minha alma essa minha angústia em forma de dor, aos gritos... Berrava minha desumanidade patética, sufocando qualquer pensamento que pudesse vir a explicá-la. Não havia explicação. O grito transcorria em reposta a pergunta que me fazia: meu ser era um éter mutante, desconstituído de personalidade própria, em busca incessante do próprio caminho. Desconectada de qualquer propósito para ser, simplesmente vagava com Tua imagem na espiral de um movimento desordenado, que atingia o ápice caótico com bastante frequencia, ou, quase sempre. A constância do não tempo que me dominava por completo. A insistência de nâo ser que em redundância me era sempre.

E depois de mim, Tu.

Eis então que Te encontrei.

Pude Te ver. Além dos olhos, olhei Tua carne, sufoquei Teu riso, lambi Tua pele, mordi Teus lábios, chupei Tua lingua, fui Tua mulher, inteira, nua e crua. Senti Teu sexo junto ao meu e juntos fomos Um na alquimia de não sermos apenas um separado mas UM juntos, UM todo, UM. És para mim o mago sagrado de meu processo orgástico mais alucinador. Contigo esqueci que não havia meu eu, esqueci que só havia dor, lembrei-me do significado da palavra Amor.

E agora você se esvai junto com o que se esvai de mim.
Fico na ausência irrefletida de meus hábitos. Na mecânica diária do dia a dia de todos os dias. Sozinha. Irremediavelmente sozinha. Com as tripas contorcidas por dentro, os dentes rangendo aos berros por fora, caminhando solitária rumo ao Nada indizível e obscuro, procurando-Te.

Sobre-vida




Eu naquela sala escura e vazia trazia a tona sua face ainda quente... e em minha mente, passava sua cabeça por entre minha coxa fria. Você me lambia como a mãe lambe uma cria, e eu te segurava e ria, ria, ria o riso cálido e afastava qualquer pensamento pálido de que poderia te perder, um dia. E você pegava minhas mãos com força, sugava minhas tetas, cheias, maravilhava-me com o gozo inebriável do prazer estrondoso. E eu era você, em uma mistura sem forma, cheiro ou cor. Mistura de corpos embebidos de prazer. Nus para o mundo, para a vida. Nus para um futuro inexistente, incoerente.  E pálida eu te olhava. Podia te ver. Sim. Com aqueles olhos te via ao meu lado, mas, antes de tudo, te via meu. Porque você É meu. Entendeu? Então não fuja, não se vá.

Adianta falar???????????????????????????????????????????????????????????????

Esvaído como pó de minha presença fico eu com sua lembrança a me remoer. A me comer por dentro, como se fosse o mais poderoso alimento esse o de não poder te ter. E assim passo meus dias: na fome insaciável que alimento nenhum presta para conter, na sede inevitável que água nenhuma serve para abastecer, no sexo sagrado que meu corpo anseia mas não logra receber, no sono almejado que há muito nem ousa aparecer... aqui estou, remoída como pó, jogada a seus pés, na esperança de ter, nem que ao menos seja, por mais uma vez.

Eu nesta sala escura e vazia rasgo papéis e grito. Vomito. Já não sei me perceber. Nem sei mais se algum dia soube ser. Tampo meus ouvidos na tentativa de sufocar o que escuto e por dentro grita mais alto aquilo que temo ver, eis que obscuro, oculto. Face sombria do meu ser, já me confundo. Não sei se sou luz ou sombra, conflito ou poder.

Nessa irremediável inexatidão de todos os fins, o sentido da vida, me fica escuso.  Sou mesmo um nada vestido de gente, a vagar por ai, em grito. Vomito.

Cordeirinha




“Experimentar remorsos de consciência por todas as minhas manifestações interiores e exteriores em meu estado de vigília ordinário, alternando com sentimentos de solidão, de desilusão, de saciedade etc... mas sobretudo enfrentar a aterradora sensação de vazio interior que me perseguia por toda parte?...”  (Gurdjieff)

Seria essa a árdua missão de todo ser humano? Experimentar remorsos? Viver em permanente estado de solidão, desilusão, saciedade? E mais: enfrentar o vazio abissal que nos rodeia?

Senão é a de todo ser humano, pelo menos é a minha.

Esse vazio interior me persegue por onde quer que eu siga. Não há jeito de escapar desses escapismos que me dominam toda.

E dominada é que sigo sendo chamada de louca.

Mas nem sempre foi assim.

Passei a vida em correnteza ordinária, puritana, regrada. Sempre fui a melhor aluna da sala e até em namoros sérios me envolvi. Promessas de grandes futuros dei aos meus pais em tenros dias de idade juvenil.

Sonhava alto e fazia-lhes todas as expectativas. Cumpria com tudo o que me era designado. Fiel cordeira fui, no rebanho do sonho sombrio de meu pai e minha mãe.

Mas de um momento ao outro gritou em mim o lobo uivante das montanhas. E feroz me lancei na busca de minha independência.

E pude ver que livre não era nada. Restava estampada em meu corpo a dependência da matéria, controversa. Então me rasguei em experiências dilacerantes para fugir do rigor imposto.

E vivo ainda nessa fuga. Sem ninguém que me rodeie, me proteja, me ajude. Todo grito é mudo e sai agudo no calar de uma noite fria, para sempre esquecida na memória vitalícia da humanidade.

Orfandade. Esta é a palavra que mais me define no momento. Vazia e sozinha, ando a beira de mim mesma e para cair no comum, vivo na ponta de um abismo.

Sobrevivo? Por ora digo que sim. Só não sei se daqui por diante sigo até o fim.

Colher




"Quem você pensa que é?"
perguntou pra mim de queixo em pé...
Sou forte,
fraca,
generosa,
egoísta,
angustiada,
perigosa,
infantil,
astuta,
aflita,
serena,
indecorosa,
inconstante,
persistente,
sensata e corajosa,
como é toda mulher,
poderia ter respondido,
mas não lhe dei essa colher.”

Martha Medeiros

Não dei e não dou, não darei. Agache, esculache, grite, esperneie. Comigo agora não tem vez. Sou forte.

Tudo bem, pode ser que eu escorregue no meio do caminho e te ceda um pedaçinho, afinal de contas, as vezes, sou fraca e generosa.

Mas não queira, meu bem, sentir o gosto por muito tempo, e nem ter o doce na boca por toda a eternidade, porque nasci na orfandade e o doce é meu, só meu. Sim, sou egoísta e assumo, sem vergonha alguma.

Pode ser que em dias assim, de assumir o egoísmo, eu fique angustiada e mulher angustiada, você sabe como é, se torna perigosa, então nem queira chegar perto da colher.

Me trate então como uma criança, me tornarei infantil, e quem sabe com esse ardil, você conquiste algo de mim. Só não se esqueça: posso ser astuta quando me convém.

E já que está confuso e longe de me entender, vou te deixar mais calminho: se aproxime de mansinho, sem me deixar aflita, me pegue em um dia que esteja serena, me faça uma proposta daquelas bem indecorosas e quem sabe, lhe darei um teco da colher.

Mas não se engane, ainda sou mulher. E como sabe toda fêmea é inconstante. E eu ainda sou mais, pois que sou persistente em minha inconstância de ser inconstante.

É por isso, meu querido, por eu ser assim, sensata e corajosa, que repito, por ora, se afaste, pois, por enquanto, eu não lhe dou essa colher.

domingo, 22 de abril de 2012

Capitulo




Por entre as frestas de uma janela estreita

passa um vento

leve e sutil

Traz consigo doce lembrança

 de um tempo outrora

meigo, infantil



pés no chão da terra pisada

mãos na teta da vaca suada


vaca materna
bezerros

crianças

fundidos
um só gozo

uma só busca

lembranças



que tempo é esse?

Senão agora?

Responda-me tu

Vaca sagrada



Jorra teu leite em minha boca

preenche-me com o teu contentamento

de me ver ali, filha tua

em igualdade

plena de sanidade e poesia



pés na terra

mãos na teta da vaca suada

A criança cresceu

e por entre a janela

 entra a brisa de um vento sutil

que relembra um tempo infantil

o ar sobrepuja os pensamentos

sobram-lhe os contentamentos

das estórias contadas em cadeiras rodadas

das rodas de pega pega

dos jogos de taco

dos beijos roubados

da face ruborizada

poetizada.

domingo, 11 de março de 2012

Êxtase




Embriagada de puro êxtase e paixão

Encontra-se a alma

Devaneando nos caminhos incertos do coração...



Os passos saem frágeis

As mãos permanecem frias

Num para sempre que parece não acabar mais



E o coração palpita

Dilatado a mais do que pode

Aberto em muito do que não se pode ver



Os olhos já não enxergam com a precisão dos sábios

E nem a cabeça pensa

 com a devida razão

Tudo é pura fantasia

Incerta é a certeza que se tem

Quando se está atada demais ao coração